Os Bons Companheiros – Lealdade, Ambição e Traição

Em 1990, Martin Scorsese entregou ao cinema um de seus trabalhos mais emblemáticos: Os Bons Companheiros (Goodfellas). Baseado no livro Wiseguy, de Nicholas Pileggi — que também assina o roteiro ao lado do diretor —, o longa retrata a ascensão e queda de Henry Hill, um associado da máfia ítalo-americana de Nova York, ao longo de mais de três décadas. Mais do que uma simples crônica do crime organizado, o filme é uma reflexão sobre poder, lealdade, ambição e decadência, apresentada com um estilo visceral e inconfundível.

A história começa com uma das aberturas mais impactantes do cinema: Henry Hill (Ray Liotta), junto de Jimmy Conway (Robert De Niro) e Tommy DeVito (Joe Pesci), mata um homem no porta-malas de um carro. A cena é brutal, mas logo corta para a famosa narração de Henry: “Desde que me lembro, sempre quis ser um gângster.” Esse momento estabelece não apenas o tom da obra, mas também sua perspectiva: a narrativa será conduzida pelo olhar seduzido e apaixonado de alguém que viveu dentro do submundo do crime.

Ainda adolescente, Henry começa a trabalhar para a máfia local e se encanta com os privilégios, a camaradagem e o respeito que os criminosos despertam no bairro. Ele se torna braço direito de Jimmy Conway, um gângster calculista, e parceiro inseparável de Tommy DeVito, um sujeito impulsivo e de temperamento violento. Juntos, eles participam de roubos, contrabando, extorsões e esquemas variados, até alcançarem o auge com o famoso assalto da Lufthansa, um dos maiores da história dos Estados Unidos.

Paralelamente, a narrativa explora a vida pessoal de Henry, especialmente seu casamento com Karen (Lorraine Bracco). A relação é marcada por altos e baixos: luxos e privilégios proporcionados pelo crime, mas também traições, violência e paranoia. Ao longo dos anos, o consumo de drogas e a perseguição policial tornam-se insustentáveis, levando Henry à delação e ao programa de proteção a testemunhas, encerrando de forma melancólica sua trajetória criminosa.

Os Bons Companheiros não é apenas uma boa história de máfia; é uma obra-prima formal. Scorsese utiliza uma variedade de recursos de linguagem que transformam a narrativa em uma experiência imersiva e quase documental. Grande parte do filme é conduzida pela narração em off de Henry Hill, que guia o espectador pelos bastidores da vida criminosa. Essa escolha cria intimidade com o público, como se o protagonista estivesse confidenciando segredos diretamente para nós. Em determinado momento, Karen também assume a narração, mostrando como até mesmo os familiares eram sugados para dentro daquele universo. Esse recurso reforça o caráter confessional da obra e aprofunda a perspectiva sobre a vida criminosa.

A câmera de Scorsese é inquieta, muitas vezes subjetiva. Um dos exemplos mais célebres é o plano-sequência do Copacabana, quando Henry leva Karen ao clube pela entrada dos fundos. A câmera acompanha o casal em um longo trajeto, revelando a facilidade com que Henry circula em ambientes exclusivos e como o mundo do crime abre portas literalmente. Essa cena sintetiza o glamour e o fascínio do estilo de vida mafioso. O ritmo da montagem, assinada por Thelma Schoonmaker, é outro ponto alto. O filme alterna momentos contemplativos e explosivos, sempre mantendo o espectador em estado de atenção. À medida que a trama avança para a fase da decadência, a edição se torna mais frenética, com cortes rápidos que traduzem a paranoia de Henry sob efeito de drogas.

A violência em Os Bons Companheiros é direta e crua, mas nunca gratuita. Cada explosão de brutalidade revela algo sobre os personagens. O temperamento instável de Tommy, por exemplo, é mostrado de forma memorável na cena do “Funny how?”, quando ele intimida Henry por uma piada aparentemente inofensiva. Essa sequência exemplifica como Scorsese trabalha a tensão: a violência pode surgir a qualquer instante, de forma imprevisível. Outro elemento essencial é a trilha sonora. Scorsese utiliza canções de diferentes décadas, acompanhando a passagem do tempo na trama. Do rock dos anos 50 até o punk e o pop dos 80, cada escolha musical é precisa. Um exemplo marcante é o uso de “Layla”, de Derek and the Dominos, em um momento que mostra corpos de comparsas sendo encontrados após o assalto da Lufthansa. A melodia melancólica contrasta com a brutalidade das imagens, criando uma sensação de ironia trágica.

O filme levanta temas centrais que transcendem a narrativa criminal. Henry Hill não é motivado pela necessidade, mas pelo fascínio. Desde jovem, ele vê nos mafiosos um ideal de vida: respeito, dinheiro fácil e uma rede de apoio que substitui a família tradicional. Essa sedução inicial é o motor de sua trajetória e explica como tantos jovens são atraídos pelo crime. Ao mesmo tempo, a obra mostra como a lealdade no submundo é sempre relativa. Embora a camaradagem entre os personagens seja evidente, a lógica do crime é permeada por desconfiança e traições inevitáveis. O destino de Tommy, morto por sua própria organização, e a delação de Henry, que entrega Jimmy e outros, são exemplos claros de como a amizade é constantemente subordinada ao instinto de sobrevivência.

A decadência inevitável é outro ponto crucial. Embora haja glamour e poder, tudo desemboca em paranoia, violência e ruína. Henry termina sua jornada como um “cidadão comum”, protegido pelo governo, mas condenado a uma vida sem a excitação do passado. O contraste entre o auge e a queda dá ao filme um tom profundamente trágico e desencantado, revelando que a vida mafiosa não oferece saídas felizes.

O elenco é um dos trunfos do filme. Ray Liotta entrega uma das melhores atuações de sua carreira. Seu Henry Hill transita entre o fascínio juvenil, a arrogância do auge e a paranoia da decadência. Robert De Niro, como Jimmy Conway, oferece uma performance contida, mas carregada de intensidade, representando a frieza calculista do crime. Joe Pesci brilha em uma atuação que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante: seu Tommy DeVito é imprevisível, engraçado e aterrorizante, encarnando a violência irracional. Lorraine Bracco confere profundidade a Karen, evitando que a personagem seja apenas a esposa do mafioso. Sua perspectiva é essencial para compreender o impacto da vida criminosa na esfera familiar.

Os Bons Companheiros foi aclamado pela crítica e pelo público. Recebeu seis indicações ao Oscar, vencendo apenas na categoria de Ator Coadjuvante para Joe Pesci. Embora tenha perdido o prêmio de Melhor Filme para Dança com Lobos, de Kevin Costner, com o passar do tempo a obra de Scorsese consolidou-se como mais influente e cultuada. O filme redefiniu o gênero de máfia, que havia sido imortalizado por O Poderoso Chefão (1972). Se Coppola havia criado uma saga quase operática, com tons de tragédia clássica, Scorsese optou por um realismo cru e frenético. Sua abordagem influenciou gerações de cineastas e roteiristas, sendo visível em obras como Cassino (1995), também de Scorsese, e em séries como Família Soprano, que deve muito à estética e ao tom de Os Bons Companheiros.

É uma obra-prima sobre a condição humana, sobre sonhos e ilusões que inevitavelmente se desmoronam. Scorsese equilibra fascínio e crítica, glamour e decadência, criando um retrato tão envolvente quanto brutal. Trata-se de um filme essencial não apenas para quem aprecia histórias de crime, mas para qualquer amante de cinema. Sua força estética, suas atuações memoráveis e sua capacidade de dialogar com questões universais o tornaram um clássico incontornável. No fim, a lição de Henry Hill é amarga: no submundo, ninguém é realmente leal, ninguém está seguro, e todo poder é passageiro. O que resta é apenas a sensação de ter vivido intensamente — e de ter perdido tudo.

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