Corpo Fechado – Uma verdadeira joia do cinema do século XXI.

Em 2000, logo após o sucesso estrondoso de O Sexto Sentido, o diretor M. Night Shyamalan lançou Corpo Fechado (Unbreakable), um filme que, à época, dividiu opiniões, mas que com o tempo se firmou como uma das obras mais cultuadas e originais dentro do universo dos super-heróis. Diferente do que se via nos cinemas naquele início de milênio — e bem antes da avalanche de adaptações da Marvel e DC — Corpo Fechado é uma abordagem minimalista, sombria e introspectiva do mito heroico, enraizado em um mundo realista, quase banal, mas profundamente simbólico.

A história gira em torno de David Dunn (Bruce Willis), um homem comum que sobrevive milagrosamente a um catastrófico acidente de trem — o único passageiro entre 131 a sair sem um arranhão. Intrigado com o ocorrido, David é procurado por Elijah Price (Samuel L. Jackson), um misterioso colecionador de histórias em quadrinhos que sofre de uma rara doença óssea que torna seus ossos extremamente frágeis. Elijah acredita que David é o contraponto de sua própria condição: alguém “inquebrável”, dotado de habilidades sobre-humanas. A partir daí, o filme mergulha em uma jornada silenciosa de autoconhecimento, identidade e propósito.

Ao contrário dos filmes de ação e efeitos visuais que dominariam o gênero anos depois, Corpo Fechado é construído com extrema paciência e precisão. A direção de Shyamalan é contida, elegante e deliberadamente lenta, reforçando o clima de mistério e inquietação. Os planos são longos, os movimentos de câmera suaves e calculados — muitos deles evocando a sensação de se estar dentro de uma história em quadrinhos, com enquadramentos que poderiam facilmente ser painéis de uma graphic novel.

A paleta de cores é outra escolha estilística notável: tons frios dominam as cenas, reforçando a atmosfera sombria e introspectiva. O azul associado a David e o roxo a Elijah não são apenas escolhas visuais, mas elementos simbólicos que refletem suas personalidades e papéis antagônicos. A trilha sonora de James Newton Howard é discreta, porém marcante, ajudando a criar uma tensão constante sem apelar para trilhas épicas ou grandiosas.

Bruce Willis entrega uma das performances mais contidas e eficazes de sua carreira. David é um homem introspectivo, preso em um casamento em ruínas, lutando com um sentimento constante de vazio e inadequação. Sua jornada não é sobre ganhar superpoderes, mas descobrir o que sempre esteve ali, escondido sob a monotonia da vida cotidiana.

Samuel L. Jackson, por outro lado, brilha como Elijah. Seu personagem é excêntrico, intelectual, com uma aura trágica e ao mesmo tempo ameaçadora. Elijah é fascinante porque representa tanto a admiração pelos super-heróis quanto a obsessão destrutiva com o equilíbrio das forças — herói e vilão, luz e sombra. A revelação final, que inverte a lógica de quem é o verdadeiro antagonista, é um dos pontos altos do roteiro e marca um dos melhores “twists” da carreira de Shyamalan.

Corpo Fechado é, acima de tudo, uma meditação sobre o papel dos mitos na vida real. Ele pergunta: e se os super-heróis realmente existissem? Como seriam? E como o mundo reagiria a eles? Ao invés de explosões e batalhas, Shyamalan entrega introspecção, dúvida, tragédia e descoberta.

O filme também discute o destino, a identidade e a necessidade de propósito. David é um homem que viveu abaixo de seu potencial durante toda a vida, sufocado por escolhas erradas e pela rotina. A jornada que empreende com Elijah é quase terapêutica, um processo de autoaceitação que culmina na cena emblemática em que salva uma família — um momento silencioso, mas profundamente catártico.

Inicialmente subestimado, Corpo Fechado ganhou força com o passar dos anos, sendo constantemente reavaliado como uma das melhores obras de Shyamalan. Sua influência é visível em diversas produções que vieram depois, especialmente aquelas que buscaram desconstruir o gênero de super-heróis. Em um cenário que hoje é saturado por narrativas grandiosas e efeitos especiais, a simplicidade e o cuidado de Corpo Fechado se tornam ainda mais preciosos.

Em 2017 e 2019, o filme se tornou parte de uma trilogia inesperada com Fragmentado e Vidro, também dirigidos por Shyamalan. Apesar das continuações dividirem a crítica, elas servem para reforçar a importância e a ousadia do primeiro filme.

Corpo Fechado é uma obra única dentro do gênero. Um thriller psicológico, um drama existencial e um conto de origem de super-herói, tudo embalado de forma sutil, melancólica e fascinante. Longe do espetáculo, ele encontra força na fragilidade humana, na dúvida e na busca por significado. É um filme que não apenas resiste ao tempo, como parece se tornar mais relevante a cada nova onda de produções que tentam reinventar o mito heroico — muitas sem o mesmo coração ou elegância. 

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