Bacurau, filme lançado em 2019, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é uma das obras cinematográficas brasileiras mais impactantes da década. Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes, o longa desafia classificações simples e mistura gêneros como faroeste, suspense, ficção científica e crítica social, criando uma alegoria poderosa sobre o Brasil contemporâneo.
Ambientado em um futuro próximo, em um sertão nordestino árido e distorcido, o filme constrói um cenário ao mesmo tempo realista e surreal. Bacurau é o nome de um pequeno povoado fictício que, logo no início do filme, descobre que foi “apagado” do mapa. Essa exclusão geográfica e simbólica marca o início de uma narrativa que oscila entre a tensão latente e a revolta explícita, refletindo questões profundas sobre poder, identidade, memória e colonialismo.

A trama tem início com a morte da matriarca Carmelita (Lia de Itamaracá), aos 94 anos, fato que movimenta a comunidade. Teresa (Bárbara Colen), neta de Carmelita, chega ao vilarejo transportando remédios e suprimentos, vinda de uma cidade maior. Desde então, sinais estranhos começam a se acumular: o caminhão-pipa é atingido por tiros, o sinal de internet desaparece, celulares não funcionam e o povoado é ignorado pelo GPS e por mapas oficiais. Bacurau, literalmente, não existe mais.
Essa sensação de invisibilidade cresce com o surgimento de drones em forma de disco voador e a chegada de forasteiros que parecem estar observando cada movimento dos moradores. A virada da história ocorre quando se revela que esses estrangeiros, liderados por Michael (Udo Kier), são caçadores de humanos — ricos turistas ocidentais que pagam para participar de um jogo sádico, no qual os habitantes da vila são as presas.
O choque entre essa violência externa, com estética de videogame e lógica colonial, e a resistência dos moradores cria o coração pulsante do filme: uma revolta popular, sangrenta e catártica.

Bacurau se estrutura como um faroeste às avessas. Em vez do clássico herói solitário salvando uma cidade indefesa, temos uma comunidade unida se armando contra invasores externos. A aridez do sertão, os confrontos com armas de fogo, a tensão da iminência da violência — tudo remete ao western. Mas esse faroeste não é americano, e sim brasileiro, nordestino, multicultural, misturado com cangaço, misticismo e realismo mágico.
Lunga (Silvero Pereira), um ex-criminoso carismático, aparece como uma figura mítica, quase messiânica, que retorna para defender o povo. Seu visual andrógino e seu discurso politizado o colocam no centro simbólico da resistência. Ao lado de personagens como Domingas (Sônia Braga), a médica alcoólatra e combativa, ele simboliza a complexidade e a força de um povo que já sofreu demais e não se curva mais.

Mais do que um filme de ação ou suspense, Bacurau é uma poderosa fábula política. A exclusão do povoado do mapa remete à marginalização histórica do interior do Brasil, especialmente do Nordeste. A presença dos caçadores estrangeiros remonta à lógica colonialista, onde o país vira um território exótico a ser explorado e consumido. A cumplicidade do prefeito Tony Jr. (Thardelly Lima), que negocia com os invasores em troca de votos e poder, é um retrato ácido da corrupção política e da elite alienada.
A resistência do povo de Bacurau não é só uma resposta à violência, mas um gesto de afirmação de identidade, de cultura, de autonomia. Em um Brasil onde tantas comunidades são tratadas como invisíveis, descartáveis ou exóticas, o filme levanta uma pergunta central: o que acontece quando essas comunidades decidem não mais aceitar o papel de vítimas?

Do ponto de vista técnico, Bacurau é um triunfo. A direção de Kleber e Juliano é segura, inventiva e ousada. O uso da trilha sonora, por exemplo, vai do brega nordestino à psicodelia setentista, criando um clima instável e ao mesmo tempo envolvente. A fotografia de Pedro Sotero captura tanto a beleza árida do sertão quanto o tom onírico e distorcido da narrativa. Os enquadramentos, as cores, a montagem: tudo é pensado para gerar tensão, estranhamento e impacto emocional.
A montagem gradual, que constrói o clima de ameaça pouco a pouco, lembra o cinema de suspense clássico. Mas, à medida que o filme se aproxima do clímax, ele se torna cada vez mais imprevisível, rompendo com fórmulas tradicionais e entregando sequências brutais, simbólicas e libertadoras.

Bacurau se recusa a caber em uma caixinha. É, ao mesmo tempo, um faroeste, um terror social, uma ficção científica distópica, uma sátira política e uma homenagem ao cinema de gênero. Essa multiplicidade é uma de suas maiores qualidades. Ela permite que o filme converse com públicos diversos e que seja lido de muitas formas diferentes.
É possível ver o filme como uma crítica direta ao governo brasileiro e suas políticas de exclusão social. Mas também é possível lê-lo como uma metáfora atemporal sobre resistência frente ao colonialismo, à violência de classe e ao apagamento cultural. Há quem veja em Bacurau ecos de Os Pássaros, de Hitchcock; de Os Sete Samurais, de Kurosawa; de Massacre da Serra Elétrica; ou até de Coringa. Todos estão certos, e todos incompletos. Bacurau é uma obra singular que se nutre do cinema mundial, mas fala com uma voz absolutamente brasileira.

No fim, o que permanece é a força simbólica da resistência. Quando o povo de Bacurau se organiza, arma-se e enfrenta os invasores, o filme ultrapassa o entretenimento e se transforma em um manifesto. Não um manifesto panfletário, mas um grito coletivo de quem cansou de ser alvo, de quem quer ser sujeito da própria história.
O longa não poupa o espectador: é brutal, é violento, é desconfortável. Mas também é vibrante, emocionante, catártico. Ele nos obriga a olhar para o Brasil que muitos tentam esconder — o Brasil rural, o Brasil mestiço, o Brasil de resistência popular. E mais do que isso: nos obriga a escolher um lado.

Bacurau é, sem dúvida, um dos filmes brasileiros mais importantes do século XXI. Ele representa um momento de maturidade do cinema nacional, ao unir excelência técnica, ousadia estética e contundência política. É uma obra que dialoga com o presente e com a história, com o Brasil profundo e com o mundo globalizado, com o cinema de gênero e com o cinema de resistência.
Ao sair da sessão de Bacurau, o espectador leva consigo mais do que imagens impactantes. Leva inquietações, provocações e, talvez, um pouco de esperança. Porque em um mundo onde tantas comunidades são ameaçadas de desaparecimento, Bacurau nos lembra que ninguém desaparece de verdade quando resiste. E que a revolta, às vezes, é a única forma de existir.