Iracema – Uma Transa Amazônica, dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, é um marco incontornável do cinema brasileiro lançado em 1975. Um híbrido potente entre ficção e documentário, o filme transcende categorias tradicionais ao mesclar o olhar crítico do cinema novo com a urgência política do momento histórico em que foi concebido: o auge da ditadura militar e a expansão da rodovia Transamazônica. É uma obra incômoda, lírica e brutal, que denuncia com crueza e inventividade os impactos da ocupação predatória da Amazônia.

A narrativa acompanha a viagem de Tião Brasil Grande. interpretado por Paulo César Pereio, um caminhoneiro cínico e machista que percorre a recém-construída Transamazônica, e Iracema, vivida por Edna de Cássia, uma jovem mestiça de 15 anos que ele conhece em Belém. Tião aceita levá-la como passageira, e o percurso dos dois se torna a espinha dorsal de uma jornada física e simbólica por uma Amazônia em transformação — ou, mais precisamente, em destruição.
Iracema não é apenas uma personagem: é também metáfora de um Brasil explorado, violentado e à mercê do “progresso” imposto pelo governo militar. Seu nome evoca diretamente a personagem indígena idealizada por José de Alencar no romantismo do século XIX, mas aqui ela surge ressignificada como símbolo de exclusão, pobreza e marginalidade.
Ao contrário do romance de Alencar, onde Iracema é sublimada como musa da mestiçagem nacional, no filme ela é vítima de abuso, abandono e violência. Representa uma Amazônia vulnerável diante do colonizador moderno: não mais o europeu do século XVI, mas o capitalista nacional dos anos 70, com sua retroescavadeira no lugar da caravela, e seu discurso desenvolvimentista no lugar da cruz.

A força de Iracema está em sua construção estética radical. O filme rompe a linha entre encenação e realidade, entre a atuação de Pereio e os depoimentos de personagens reais encontrados ao longo do trajeto. Tião é um ator interpretando um papel, mas os trabalhadores, colonos, prostitutas, indígenas e agricultores que surgem pelo caminho não são ficcionais: são pessoas comuns falando de suas vidas diante da câmera.
Essa justaposição de planos documentais e ficcionais confere ao filme um caráter instável, muitas vezes desconcertante, mas profundamente eficaz. A câmera de Bodanzky, que também assina a fotografia, é seca e precisa. Ela captura a poeira, o barro, a fumaça, os corpos suados e cansados. Não há idealização da paisagem amazônica — pelo contrário: há desolação, incêndios, madeira derrubada, gado em terras griladas e seres humanos desumanizados.
A trilha sonora, com canções populares e ruídos diegéticos da estrada, ajuda a compor uma atmosfera quase apocalíptica. O som do motor do caminhão e das motosserras se mistura ao choro da criança faminta e à voz de um político exaltando as virtudes do “milagre econômico”. A montagem, cortante e dissonante, fragmenta o real e o ficcional, questionando continuamente a posição do espectador diante daquilo que vê.

O corpo da protagonista é explorado de maneira intencionalmente incômoda. A relação entre Tião e Iracema é marcada pela violência simbólica e física. Ela é colocada como objeto de desejo, mas também como símbolo da degradação humana. Em vários momentos, a câmera se detém em sua nudez — não como forma de erotismo gratuito, mas como gesto político: é o corpo amazônico, indígena, feminino, sendo consumido.
Essa representação não deixa de ser controversa. Há quem critique a exposição do corpo de uma adolescente em cenas explícitas, mesmo que o intuito seja denunciar a exploração. A ambiguidade ética está presente, e talvez seja justamente essa zona cinzenta que faça o filme tão provocador e relevante até hoje. Iracema – Uma Transa Amazônica não oferece respostas fáceis, nem soluções morais confortáveis. Ele perturba, confronta e exige um posicionamento.

Ao longo do trajeto pela Transamazônica, o filme capta o choque entre dois Brasis: o Brasil do discurso oficial, que vende o desenvolvimento e a integração da região Norte ao restante do país como símbolo de modernidade, e o Brasil real, feito de miséria, prostituição infantil, destruição ambiental e precarização do trabalho.
Em um dos momentos mais emblemáticos, vemos Tião conversando com militares, políticos e fazendeiros, todos repetindo chavões sobre “o futuro da nação”, enquanto ao fundo a floresta arde em chamas e crianças dormem sobre o barro. Esse contraste é o cerne da crítica do filme: a Transamazônica, longe de ser via de progresso, é retratada como instrumento de violação. A estrada corta a mata como a violência corta os corpos dos esquecidos.
A ironia do título, com a palavra “transa” no duplo sentido — de relação sexual e de enganação —, reforça essa leitura. A “transa amazônica” é tanto a relação desigual entre Tião e Iracema quanto a relação entre Estado e Amazônia. Em ambos os casos, há uma dinâmica de poder em que um lado impõe, e o outro é subjugado.

Na época de seu lançamento, Iracema – Uma Transa Amazônica foi imediatamente censurado pelo regime militar. Proibido no Brasil, o filme só pôde ser exibido no exterior, participando de festivais como o de Cannes, onde causou forte impacto. Sua crítica explícita à ocupação da Amazônia e sua denúncia da prostituição infantil bateram de frente com a imagem propagandística de um Brasil em crescimento.
Somente anos depois, com a abertura política, o filme foi liberado e redescoberto. Desde então, consolidou-se como obra essencial para compreender não apenas o cinema político brasileiro, mas também as contradições históricas que moldaram o país. É uma cápsula do tempo que continua reverberando no presente, especialmente diante das discussões atuais sobre a Amazônia, os povos originários e os limites do progresso.

Iracema – Uma Transa Amazônica é um filme que incomoda. Incomoda porque denuncia. Incomoda porque não se acomoda. Incomoda porque exige que o espectador veja aquilo que normalmente é apagado das narrativas oficiais: a pobreza, a desigualdade, a destruição do meio ambiente e a exploração dos corpos marginalizados.
Sua força está em não suavizar nada: nem a feiura da estrada, nem a brutalidade do sexo, nem a mentira do progresso. É uma obra que resiste ao tempo justamente por sua recusa em ser complacente. Com sua linguagem híbrida, seu realismo sujo e sua urgência política, o filme desafia os limites do cinema e do próprio Brasil enquanto projeto de nação.
Mais do que nunca, em tempos de novas ameaças à floresta e seus povos, Iracema continua sendo um espelho incômodo — e necessário — de quem somos e do que estamos fazendo com o país. A transa amazônica ainda não terminou, e o filme segue como um grito no meio da estrada.