Hot Milk (2025) – Um mergulho sensorial nas correntes emocionais

Em sua estreia na direção, a roteirista Rebecca Lenkiewicz — conhecida por explorar o desassossego feminino em filmes como DesobediênciaEla Disse e Ida — mergulha no universo ambíguo e inquieto de Hot Milk, adaptação do romance de Deborah Levy. É um trabalho que carrega tanto as qualidades literárias quanto os riscos desse tipo de transposição: a densidade simbólica e emocional do texto original nem sempre encontra sua contrapartida visual, mas o filme ainda assim hipnotiza com seu ritmo lânguido e atmosfera ensolaradamente claustrofóbica.

Ambientado em uma cidade costeira decadente no sul da Espanha, o longa acompanha Sofia, vivida por Emma Mackey, uma jovem antropóloga frustrada que viaja com a mãe, Rose, interpretada por Fiona Shaw, em busca de tratamento para uma dor crônica que mantém Rose em uma cadeira de rodas. A clínica, comandada pelo enigmático Dr. Gomez, de Vincent Perez, é um espaço tão estranho quanto os próprios personagens — de paredes de vidro, perdida entre construções inacabadas, entre a promessa e o abandono. Sofia, por sua vez, vaga por praias pedregosas, mares infestados de águas-vivas e sonhos interrompidos, enquanto tenta entender o quanto sua vida pertence a ela mesma — ou à mãe.

O que poderia ser uma história de libertação se transforma em um estudo melancólico sobre dependência, ambiguidade e desejo. O relacionamento entre Sofia e Rose é o centro emocional do filme: uma simbiose tóxica, marcada pela manipulação, pela culpa e pelo silêncio. Shaw domina cada cena com uma performance afiada, oscilando entre sarcasmo, fragilidade e controle absoluto, enquanto Emma Mackey carrega nos ombros a difícil tarefa de interpretar uma personagem contida, que reprime tanto que quase desaparece.

É nesse espaço de suspensão emocional que entra Ingrid, vivida por Vicky Krieps, uma figura quase mítica, que surge a cavalo, com lenço cigano, sedutora e livre. Mas logo percebemos que ela também carrega seus próprios traumas, e talvez projete em Sofia algo que nunca teve. A relação entre as duas, apesar de começar com sensualidade e promessa, não oferece saída fácil — tampouco soluções redentoras. Como quase tudo no filme, flutua entre o simbólico e o literal, entre o real e o sonho.

Hot Milk é um filme de dualidades — entre mãe e filha, norte e sul, conforto e opressão, leite e veneno. A estética reforça essa sensação de suspensão: a trilha minimalista (por vezes reduzida a uma nota sustentada), os diálogos fragmentados, os planos que se estendem em silêncio e as imagens documentais que surgem de repente — como se o filme nos lembrasse que também é uma investigação antropológica da alma.

Há momentos em que a adaptação escorrega. A interioridade densa de Levy, cheia de metáforas e ironia, nem sempre se traduz bem nas cenas silenciosas em que Mackey caminha cabisbaixa ou encara o mar. Explosões de raiva ou decisões impulsivas de Sofia soam abruptas, como se a superfície calma da personagem tivesse sido arranhada sem que víssemos o que havia por baixo. E o desfecho, deliberadamente enigmático, pode dividir espectadores: seria um ato de libertação? Um delírio? Um colapso?

Mas talvez essa seja a chave de Hot Milk: como o próprio título sugere, algo que deveria ser nutritivo e reconfortante — o “leite quente” — é, aqui, denso, pegajoso, difícil de engolir. A experiência emocional não se resolve. Assim como os personagens, ficamos à deriva, em busca de significado, tentando encontrar um ponto de ancoragem em meio às correntes contraditórias do desejo, da memória e da dor.

Não é um filme fácil, nem inteiramente satisfatório. Mas também não tenta ser. Hot Milk prefere a inquietação à catarse. E ao final, quando o sol ainda brilha sobre aquele cenário inacabado, o que resta é a sensação de ter sido arrastado por uma maré incerta — mais próxima da verdade emocional do que qualquer final feliz poderia oferecer.

Ficha Técnica:

Direção: Rebecca Lenkiewicz

Roteiro: Rebecca Lenkiewicz

Produção: Christine Langan, Kate Glover e Giorgos Karnavas

Elenco: Emma Mackey, Fiona Shaw, Patsy Ferran, Yann Gael, Vangelis Mourikis, Vincent Perez e Vicky Krieps

Cinematografia: Christopher Blauvelt e Si Bell

Edição: Mark Towns

Trilha Sonora: Matthew Herbert

Distribuição: O2 Filmes

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